Na raia da memória
Prosa à solta
A memória do olhar
de amélia nabais
Os olhos vêm, a máquina regista, a memória recupera a infância e o encontro acontece .
Olhar, registo, passado, num momento único, global. Sem antes nem depois. Eternamente presente.
Ando pela aldeia, disponível para todas as imagens. As ruas e os lugares povoam-se de novo, nos rostos sulcados de vida, nos gestos cada dia repetidos, na inconfundível forma de falar raiana.
Oiço ainda as rãs, no olhar que se leva à ribeira, onde os patos se calaram e foi apanhada a roupa toda que corava, em redor, na erva verdinha. Levaram também os bancos das margens já sem pedras e agora não tenho onde poupar os joelhos. Mas continuo a lavar, a olhar. A roupa branquinha macia nas mãos.
Os chocalhos, lá longe, andam devagar. Cheiram a pastagens e lameiros frescos. Escondem-se nas paredes de granito que as pedras desenham nos campos tratados, e trazem, devagarinho, a Mimosa, a Castanha, a Estrela e a Churra.
O sino da igreja, do alto e de perto, manda recolher ao toque das Trindades, marca ritmos e orienta o quotidiano. Foi-se embora a cegonha.
Condensam-se cores, aromas e sabores nas imagens que apanho em cada esquina, em cada vereda, transportando-me aos meus tempos de menina. Velhos sons e vozes famliliares servem-lhes de cenário. Os dedos tingem-se de amoras e aguardam o calor que a neve, brincada, neles deixará. E confundem-se pixels, tranças e bibes.
Peças soltas do puzzle que a todo o momento componho e me garante identidade. Confundidos, no presente, os tempos idos com os que estão por vir. Os primeiros indicam caminhos e garantem segurança. Pertenças minhas, nossas. Fazem-nos quem somos e alimentam os sonhos novos que havemos ainda de sonhar.
E continuo. Revisitando lugares. E tempos. Novo olhar. Novo regresso à infância, no colo fofo e morno da memória. Novo registo.
páginas 85 e 86