País das pedras
Santuário de Aldeia do Bispo - Sabugal
A SWE da povoação de Aldeia do Bispo (Sabugal), no sítio das Fontainhas, já a confinar com o Vale João Fernandes, em local altaneiro e dominando para o lado norte uma extensa nave quase plana, deparamos com o que me parece ser um santuário rupestre lusitano. Para todos os efeitos estaremos em area de vetões… Todavia, segundo um outro critério, para lá do Coa é area de Lancienses (transcudanos?).
Após calcorrear velhos caminhos definidos pela dupla paralela dos ditos “cavalos de frisa” vamos encontrar um barrocal de extensão razoavel constituído por grandes fragas esparsas e que definem uma area granítica descontínua.
O barrocal não é unico por aquelas bandas e daí alguma dificuldade em identificá-Io pela primeira vez e, muito menos, as “duas Pedras” que, elas sim, constituem o santuário, como vamos ver. Foi o meu grande amigo, P.e José Esteves Luis, natural desta terra arraiana, investigador incansável de tudo o que sejam cerros e penedias deste Portugal, que me levou até lá. A ele devo, numa boa parte, este “bichinho” das Pedras. E de há muito!
A poente deste conjunto rochoso, apeados, quase contíguos, destacam-se dois penedos que, num ângulo de observação oeste-Ieste e a uma curta distância, apresentam a configuração da Foto 156. Não se trata de pedras soltas, como à primeira vista poderá parecer. São pedras de raiz ou “petras fictas” e a base de uma e de outra estilizam dois enormes pés (botas) que consoante o ângulo de observação definem o pé direito ou o esquerdo, o que não será ocasional. Visto o conjunto deste ângulo de observação, obtemos os símbolos do Mal : a Pedra à esquerda, estilizando cabeça de serpente, inclina e apoia sobre a Pedra à direita que simboliza o Lagarto (a Trebosarda) uma das divindades a que o santuário estaria primacialmente afecto. As duas Pedras definem uma reentrância de formato ogival bem visivel na fotografia e a que voltarei a referir-me quando abordar a questão dos Ritos de Passagem na Religião e na sociedade lusitanas.
Nada de semelhante com as Pedras Sagradas da Comusela – todavia, o que falta em nûmero de elementos, tamanho e grandiosidade, é superado em sortilégio. É que, tudo tem origem nas duas Pedras da Foto 156. Quem diria?
Consoante os vários ângulos de observação tudo ali vai surgindo consubstanciado de pleno acordo com os princípios da Religião Lusitana já atrás enumerados, prefigurando também algumas «qualidades ou atributos» do Deus dos lusitanos : o hibridismo do conjunto e a estilização das formas que revelam e ocultam ao mesmo tempo, as sobreposições dos vários elementos enformadores que fazem nascer imagens e figuras consoante a mensagem que se pretende dar, o princípio da geminalidade que se revela no Masculino ( o Maio) e no Feminino (a Maia), a Serpente e o Lagarto (o Mal), a tríade guerreira sobreposta a um pé gigantão, também ela geminada… e até uma « cabeça » de mulher embiocada, vista do lado sul.
Assim e particularizando :
As Pedras vistas do lado norte apresentarn a configuraçâo dada pela Foto 157: é a revelação do Bem através de uma tríade bem visível na fotografia.
Segundo a regra das Pedras da Comusela e da direita para a esquerda, são perceptiveis os dois elementos geminados (a Maia e o Maio) espécie de globos sobrepostos; à esquerda e ao alto o conjunto remata em bico, definindo em silhueta, uma tríade guerreira quase bico de águia, em tudo idêntica, na sua dinâmica, ao Ares dos Vélites da Arrifana e aos de Vila do Touro.
A dupla geminada (a Trebofala), a tríade guerreira que encima o 2° monolito à esquerda, que é aliás uma dupla tambérn, a passagem estreita entre as duas “Pedras Sagradas” , tudo isto é bem visivel na Foto 158, conseguida de NE – SWE. Sendo a base de cada uma das Pedras um pé gigantão, taI simbologia poderá querer significar da afectação do local aos peões, com destaque especial para os vélites, como já foi observado, e que teriam aqui o seu Deus da guerra.
Isto em consonância corn as “pedras peâs” bifurcadas dos Oiteiros – Pêga (Foto 116) e com a geminalidade do Ares dos Vélites de Sortelha (Foto 143).
O ângulo de observação reservado e consentido aos fiéis devia ser aquele (do sector norte) a partir do quaI se conseguiu a Foto 157. Por um lado, atingese o local, entrando pelo lado leste e depois de percorrer um emaranhado labirinto que nos conduz a uma área oculta e secreta, no âmago das Penedias, eventualmente reservada a oficiais de culto ou a algum tipo especial de penitentes ou pagadores de promessas. Por outro lado, e sendo o Santuário uma área descoberta, é de registar que o recinto, bastante extenso, diga-se, se estende para o lado norte e a face da Dvindade exposta aos devotos era essa. Como no santuário da Cornusela, parece confirmar-se a regra de que a divindade não deve ser contemplada de frente – mais uma vez o ângulo de observação permitido parece ser de perfil e pela retaguarda e, tanto neste caso como no da Cornusela, a partir do sector norte.
Ainda, as duas Pedras vistas do lado sul (SWE/NE) dão a imagem da Foto 159 que estiliza cabeça de mulher, quase busto; de perfil, protegida e encoberta pelo bioco, mantilha ou xaile, segundo os cânones de Estrabão, a sua postura é de recolhimento. E converge: exactamente atrás, nessa direcção, para norte, está o recinto destinado aos fiéis.
A nascente das Pedras Sagradas, por sobre enorme penedo, pode ver-se insculpido um podomorfo de tamanho razoável representando o pé direito (desfavoravel) apontando um percurso de saída para o lado sul do Santuário (Foto 160). Seria por aí e após rituais próprios, em todo o caso associados às passagens estreitas e aos podomorfos, que seriam expulsos os indesejaveis, os proscritos.
Tudo o que foi descrito até aqui pertenceria, penso, à área propriamente dita sagrada do Santuário, eventualmente reservada aos sacerdotes ou sacerdotisas (ou as duas coisas), a alguns penitentes, às vitimas…
A jusante, para o lado norte, e como já atrás foi referido, estende-se uma grande nave, oblonga, cujas paredes delimitativas, irregulares e sinuosas vão estreitando em sentido descendente para rematar, mesmo ao fundo, em cauda de réptil que quase enrolou sobre si própria. E não se trata apenas de um recurso literário! É que, a configuração do recinto é a de um Lagarto gigantão estampado no terreno, como pode ver-se no esboço gráfico representativo. A parede que ladeia o recinto pelo lado poente é acompanhada por um caminho, em toda a sua extensâo, sentido N/S. A área bastante circunscrita das Pedras Sagradas, bem lá no alto, é separada do resto do recinto por uma divisória (parede) em pedra. O recinto tem várias entradas que vão assinaladas no esboço gráfico. A principal é na parte fundeira, junto a uma das Fontes, a nascente, e é assinalada por uma bota direccional – pé esquerdo (Foto 161) que, na linha interpretativa do esquerdo favorável, representará a entrada ou a vinda de quem “vem por bem” , por oposição ao podomorfo direito, lá no alto, significando a saída, a expulsão, e a que já se fez referência. Tudo leva a crer que os fiéis entrados por aí, e já dentro do recinto, eram encaminhados de modo a passar defronte das “estatuas” a que o Santuário estaria primacialmente afecto, em direcção à tamanca da Foto 162; mais uma vez a esquerda que seria, este sim, o símbolo da entrada na área propriamente dita sagrada do recinto, ou seja, o espaço para lá dos símbolos representativos. O primeiro símbolo, à esquerda, pela sua dinâmica, é representativo do Ares dos vélites (Foto 163) e converge com a Pedra Sagrada que também lá no alto os representa; o segundo símbolo, à direita, e junto da soca ou tamanca é um monumental Lagarto (Foto 164) igualmente representado nas Pedras Sagradas quando estas são vistas de poente para nascente e ainda no próprio terreno cujo recinto apresenta esse formato. A ser assim, e pela metade, não seria de espantar que o epíteto de Lagarteiros para as gentes de Aldeia do Bispo pudesse ter aqui a sua origem, bem remota, como é de ver.
A nave destinada aos fiéis está dividida em duas partes, por uma parede não muito alta. Na parte inferior, a maior, além dos símbolos já referidos, logo à entrada, muito próxima da divisória há uma outra fonte térrea (tipo presa ou valado) onde os fiéis se poderiam abastecer de água incluindo a necessária para eventuais sacrifícios ou abluções. Na parte mais alta do recinto, a menor, e sobre o lado esquerdo, numa linha de observação N/S, deparamos com várias pedras de tipo paralelipípedo, de tamanho mais que médio que poderiam servir de mesa ou de ara… Acontece até que uma dessas pedras apresenta lateralmente várias recravas profundas destinadas certamente a chumbadoiros de argolas ou cadeias para prisão… Talvez de animais! Mas… nada de espantar! Estamos numa área de culto e os sacrifícios entre os lusitanos eram, por regra, parte da cerimónia religiosa. Mas podiam também servir para as pessoas estender o seu farnel e comer as suas merendas… Por que não? Nas festas sempre se comeu, bebeu e bailou!
Não sei até que ponto é que a divisão do recinto em duas partes não possa querer dizer da separação, nos actos de culto, das mulheres e dos homens. Se assim fosse, como creio, e não só a nível do religioso, as mulheres ocupariam o espaço mais alto no terreno e os homens o espaço inferior. É esta uma regra já apurada em outras situações mercê das respectivas simbologias e sua localização no terreno. Não sei até se no local não existirão os tais símbolos feminino e masculino que confirmam esta regra.
Célio Rolinho Pires in O país das pedras